Arquivo de agosto \12\-02:00 2013

Dia dos Pais

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Na comemoração do Dia dos Pais eu nunca quero falar, escrever ou pensar porque pra mim é um dia de constrangimento.
Mas hoje eu resolvi lembrar um pouco sobre papai.
Se ele estivesse vivo, estaria completando 68 anos.
Nossa relação era um mix de amor e ódio.
Mamãe dizia que isso só acontecia porque éramos iguais.
Durante minha vida ao lado dele, nós nos comunicávamos através de sutilezas, violências e marcas profundas.
Fui crescendo e descobrindo as maravilhas e os abismos de ter um pai instável, inteligente, e algumas vezes desconectado do mundo.
Na minha infância, ele era extremamente rigoroso e inacessível.
Aí que eu passava os dias gravitando ao redor de seus livros e discos, tentando decifrar o mistério que vinha dele.
Eu achava legal ter um pai obscuro.
Os outros pais me pareciam tão óbvios, tão fáceis em seus papéis de cuidar do sustento lar e dos filhos. E certamente eles não tinham em suas estantes um livro com o título O Anticristo, (me ensinando cedo, aquilo que eu descobriria mais tarde, sua ácida crítica ao Cristianismo).
Apenas meu pai acordava angustiado num domingo, e escutava Der Freischütz, de Weber.
Aliás, ele sempre me acordava na hora que bem desejasse e então contava uma história alucinada sobre alguma música.
Papai dizia que eu ainda conheceria um escritor com o nome de Thomaz Mann e eu acreditei.
Saí de casa cedo, mas nunca me esqueci dos rituais e hábitos que ele detinha.
Inconscientemente trouxe vários desses para a minha vida.
E percebo que assim, é como se ele estivesse comigo.
Tínhamos formas patéticas de revelar o enorme amor que sentíamos um pelo outro.
Em seu aniversário, eu poderia aparecer com um embrulho que ele insinuava não estar nem aí para mais um par de meias ou um perfume.
Mal eu vinha com o pacote em minhas mãos, e ele com seu humor duvidoso já sorria ironicamente.
Papai parecia ter um prazer naquele ritual que se repetia sistematicamente todo ano.
Eu sentia ódio dessa reação, mas hoje sou feita dessa mesma matéria.
Entendi que o tal riso era de timidez, de não saber agradecer, de não saber receber.
Muitas vezes o riso de papai era de sua própria miséria, pelo desencontro constante que era sua vida com a família.
E assim ele carregou consigo e transmitiu a mim o legado e a sutileza da ironia fina e cortante.
E numa cumplicidade sutil e num acordo tácito que eu carreguei durante muito tempo, aquilo que ele me transmitiu numa coisa viva, forte e um tanto dolorida.
Em 1999 senti uma saudade imensa dele e liguei dizendo que iria voltar para Rondônia, abandonando a minha vida não construída em Curitiba.
Ninguém entendeu nada, principalmente mamãe, mas todos respeitaram a minha decisão “adolescente”.
Ainda era início de julho, e eu sentia uma necessidade enorme de resgatar algumas coisas que vinham se perdendo na distância do tempo e do espaço.
Por telefone conversamos por uma hora e meia de um jeito completamente novo. Como numa espécie de mágica, não houve constrangimento e eu disse as palavras que ficaram guardadas durante muitos anos.
Ele, com a saúde frágil por conta do câncer, desligou o telefone emocionado e acordou no dia seguinte no hospital.
A gente nunca sabe calcular muito bem a dimensão de um ato. Ainda mais de um ato de amor, do qual nunca estamos preparados para nos defender.
Voltei para a casa dos meus pais.
Nos últimos anos de sobrevida de papai, durante minha re-convivência com ele, eu ainda sentia que algo nos desequilibrava.
Assim evitei um contato mais próximo, como havia prometido a mim mesma.
Aos poucos eu despencava perplexa num precipício angustiante.
E quando vi meu pai em coma profundo, acompanhei todos os dias seu silêncio também sozinha.
Falei, falei, falei.
Poucas vezes chorei. Sentia vergonha dos olhares dos outros. Todos diziam: Ele não escuta você, prepare seu coração porque só um milagre pode fazer com que ele saia desse quadro.
E eu, teimosa, e acreditando mais na narrativa que cada um constrói para si do que no discurso médico, ia me enchendo de certeza que ainda falaria com meu pai depois de tanto tempo de silêncio e distância.
Depois de 22 dias, vivendo ali comigo, ele faleceu.
Quando o vi dar o último suspiro, corri para as fotos, as cartas, os livros, mas nada tinha a abrangência do meu afeto e daquilo que vivi.
Tocava as coisas do cotidiano, mas tudo parecia ainda mais fluido, evanescente e efêmero.
Todos os meus sentidos, atingidos pela perda, acordaram da letargia que eu tentava retomar.
Entrei em descompasso.
Tudo ganhara, repentinamente, um contorno triste e iridescente.
Era outono em minha vida, e as folhas caiam pálidas dentro de mim.
Assim o tempo se imobilizava na espera de um longo inverno que eu já podia prever.
Foi ao perdê-lo que o primeiro golpe de dor me atravessou o peito.
Eram as tiranias da distância na intimidade que dançavam dentro de mim.
E talvez o inverno que eu esperava, já tivesse chegado; talvez ele sempre tivesse existido permeando essa relação enigmática.
Na morte de meu pai senti o frio cortante que vinha de dentro e se expandia para o mundo.
Chorei por algumas horas seguidas naquela manhã.
E hoje, antes de me emocionar com a lembrança dos rituais no dia dos pais e em seus aniversários, pensei em reescrever esse amor infinitamente profundo, denso e extenso.
Amor esse, que de alguma maneira, me permitiu amar meu pai e mergulhar junto com ele no insondável oceano de possibilidades que o devir nos reservou.
Nesse ano, no mês do meu aniversário, completarão 12 anos que papai viajou em sua nave lírica, mas não sem antes me levar com ele em muitas de suas sábias perplexidades.
E são dessas viagens o que mais sinto saudades…

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