Arquivo de agosto \26\-02:00 2010

Para que serve a psicanálise?

A quem luta para se manter adulto, o paternalismo dá calafrios, ou mesmo vontade de sair atirando

A ASSOCIAÇÃO Internacional de Psicanálise (IPA) foi fundada em 1910. Presente em 33 países, com mais de 12 mil membros, ela festeja seu centésimo aniversário. Aos colegas da IPA (embora eu tenha me formado numa de suas dissidências), meus sinceros parabéns.
A festa é uma boa ocasião para perguntar: para que serve, hoje, a psicanálise? A campanha eleitoral em curso me ajuda a escolher uma resposta.
Repetidamente, o presidente Lula e Dilma Rousseff se apresentam como pai e mãe dos brasileiros. Em 17/8, Lula declarou: “A palavra não é governar, a palavra é cuidar: quero ganhar as eleições para cuidar do meu povo, como a mãe cuida de seu filho”.
No dia seguinte, Marina Silva comentou: “Querem infantilizar o Brasil com essa história de pai e mãe”. Várias vozes (por exemplo, o editorial da Folha de 19/8) manifestaram um mal-estar; Gilberto Dimenstein resumiu perfeitamente: “Trazer a lógica familiar para a política significa colocar a criança recebendo a proteção de um pai em vez de um governante atendendo a um cidadão que paga imposto”.
Entendo que um presidente ou uma candidata se apresentem como pai ou mãe do povo. Embora haja precedentes péssimos (de Vargas a Stálin, ao ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-il), estou mais que disposto a acreditar que Lula e Dilma se expressem dessa forma com as melhores intenções.
O que me choca é que eleitores possam ser seduzidos pela ideia de serem cuidados como crianças e preferi-la à de serem governados como adultos.
Se o governo for paternal ou maternal, o que o cidadão espera nunca será exigível, mas sempre outorgado como um presente concedido por generosidade amorosa; o vínculo entre cidadão e governo se parecerá com o tragipastelão afetivo da vida de família: dívidas impagáveis, culpas, ciúme passional etc. Alguém gosta disso?
Numa psicanálise, descobre-se que a vida adulta é sempre menos adulta do que parece: ela é pilotada por restos e rastos da infância. Ao longo da cura, espera-se que essa descoberta nos liberte e nos permita, por exemplo, renunciar à tutela dos pais e ao prazer (duvidoso) de encarnarmos para sempre a criança “maravilhosa” com a qual eles sonhavam e talvez ainda sonhem.
Tornar-se adulto (por uma psicanálise ou não) é um processo árduo e sempre inacabado. Por isso mesmo, a quem luta para se manter adulto, qualquer paternalismo dá calafrios -ou vontade de sair atirando, como Roberto Zucco.
Roberto Succo (com “s”), veneziano, em 1981, matou a mãe e o pai; logo, fugiu do manicômio onde fora internado e, durante anos, matou, estuprou e sequestrou pela Europa afora. Em 1989, Bernard-Marie Koltès inspirou-se na história de Succo para escrever “Roberto Zucco”, peça admiravelmente encenada, hoje, em São Paulo, na praça Roosevelt, pelos Satyros.
Na peça, Zucco perpetra realmente aqueles crimes que todos perpetramos simbolicamente, para nos tornarmos adultos: “matar” o pai, a mãe e, dentro de nós, a criança que devemos deixar de ser.
O diretor da peça, Rodolfo García Vázquez, disse que Zucco é um Hamlet moderno. Claro, para Hamlet, como para Zucco, o parricídio é uma espécie de provação no caminho que leva à “maioridade”. Além disso, pai, padrasto e mãe de Hamlet eram reis, e o pai de Succo era policial. Para ambos, o Estado se confundia com a família.
Se o Estado é um pai ou uma mãe para mim, eu não tenho deveres, só dívidas amorosas, e, se esse Estado me desrespeita, é que ele me rejeita, que ele trai meu amor. Por esse caminho, amado ou traído pelo Estado, nunca me considerarei como um entre outros (o que é uma condição básica da vida em sociedade), mas sempre como a menina dos olhos do poder.
Agora, se eu me sentir traído, não me contentarei em mudar meu voto, mas procurarei vingança no corpo a corpo, quem sabe arma na mão; pois essa é a linguagem da paixão e de suas decepções. O paternalismo, em suma, semeia violência.
Enfim, se é verdade que muitos prefeririam ser objeto de cuidados maternos ou paternos a serem “friamente” governados, pois bem, nesse caso, a psicanálise ainda tem várias boas décadas de utilidade pública entre nós.
É uma boa notícia para a psicanálise. Não é uma boa notícia para o mundo fora dos consultórios.

(Contardo Calligaris)

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O macho da relação

No restaurante eu puxo minha cadeira.

As vezes eu o tiro para dançar e conduzo os passos.

E, Deus, tenho que me controlar para não rodopiá-lo no ar.

Eu carrego todas as compras e esqueço que ele poderia me ajudar no supermercado.

Decido onde vamos e quando vamos.

E quando há alguma opinião a ser dada, minha voz não se inibe de mencionar qualquer palavra.

Não quero carinhos depois do sexo, apenas adormecer para o amanhã.

É assim, sou assim.

Descobri que eu sou meio homem na relação.

Porém, nesse atual mundão de Deus qualificar o que é “atitude de homem” e “atitude de mulher” é temerário e beira a arbitrariedade.

Dúvida: Porque o homem deveria ser o protetor, o que conduz, o que planeja?

Pra mim é balela a “resposta teoria” : é  porque a mulher já possue inúmeras preocupações extras.

Ou seja, seguindo o raciocínio: No dia a dia, o homem deveria ser o ATIVO, assim como é na cama.

Nova dúvida:  Quem garante que os homens encenam apenas o papel ATIVO entre quatro paredes, numa cama?

Enfim, minha amigas dizem que “nós mulheres” deveríamos ter “o nosso” sempre tirado da reta.

 – Uma vez na vida, que seja! –

Mas não é o que acontece, ao menos comigo.

E quer saber? Ainda bem.

Numa relação mal posso respirar.

Tenho o péssimo hábito de dirigir todos os capítulos e, ainda, atuar neles.

Escolho os figurinos, levo comida ao elenco e, ainda, decoro o cenário.

Eu gosto de levá-lo a um novo restaurante e lhe fazer surpresas.

O ruim, é que esse “temperamente, ego” eu também imponho aos amigos.

E confesso: “algumas vezes é cansativo ser tão ativa assim.”

Bom, eu sou mulher e namoro um cara.

Teoricamente, eu deveria ser A Passiva, certo?

E-R-R-A-D-O!

Diferente do fato que as vezes preciso de alguém que cuide da porra das minhas coisas.

Mas a REALIDADE que está enfiada entre minhas pernas como um O.B diz: “É impossível alguém com atributos ATIVOS sendo homem.”

Deus (quantas vezes eu disse seu nome em vão aqui?): quero ser mulherzinha.

Quero ser frágil.

O sexo frágil.

A fragilidade.

A passiva.

Esquece tudo, eu não quero mais nada disso, quero continuar sendo feliz, só isso!

É que hoje eu acordei me sentindo o macho da relação…

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Pessoas VERDADEIRAS

Eu sou uma eterna apaixonada por palavras, música e principalmente: PESSOAS VERDADEIRAS.

Não me importa seu sobrenome, onde você nasceu, quanto carrega no bolso.

Pessoas vazias são chatas e me dão sono.

Gosto de quem mete a cara, arrisca o verso, desafia a vida.

Tem muita coisa dentro de você?

Então jogue essa porra de identidade fora e senta aqui.

Pára de falar da rave.

Da viagem.

Das 200 horas que ficou sem dormir ouvindo tuntztuntz.

Ok, pode falar! Mas seja breve.

Eu quero saber sobre você. VOCÊ!

Você não é só uma festa, uma foto de orkut, um carro bonito que te custa caro.

Você não é só um Iphone, uma TV de plasma, uma notícia barata de jornal.

VOCÊ É GENTE!

E gente sente.

Gente ama, sofre, sente sono.

E tem medo.

EU TENHO MEDO.

Eu, na verdade, tenho muitos medos.

E um deles é que as pessoas virem apenas uma IMAGEM.

Não para os outros (que se fodam os outros!), mas para si mesmo.

Meu Deus, aonde vamos parar?
Antes que a conversa se estenda, quero esclarecer logo.
Não sou hipócrita, veja bem.
Também adoro um auê, uma frescurinha, champagne boa.
 Tenho um ego chato que apaga fotos em máquinas alheias.
Fico emburrada se a calça jeans não entra.
Brigo cá com meus defeitos (que são caros, fartos e meus).
E acho que todo mundo também.
Mas o que vim dizer hoje não é isso.
Ou melhor, é sim.
O que eu quero falar na verdade é que: A GENTE PODE SER BEM MAIS QUE ISSO.
Que tal preocupar-se um pouco mais com SER do que com o TER, nem que seja pra variar?
Me conte suas viagens, me mostre sua história, mas seja sincero: você detestou aquele lugar que todo mundo ama!
VOCÊ ODIOU, na verdade.
Então pra quê dizer que foi uma viagem “do caralho” e colar aquelas fotos com aquela gente cretina bem no meio do seu mural?
Não precisa fazer linha comigo, nasci desalinhada, você sabe.
Lembre-se de quem você era, DE QUEM VOCÊ É.
(Você se lembra?).
É sua essência, tudo o que há por trás desse sorriso lindo e óculos escuros.
É minha gente.
Estou naqueles momentos silenciosos em que pouca coisa parece fazer sentido.
Sigo a vida conforme o roteiro, sou quase normal por fora, pra ninguém desconfiar.
Mas por dentro eu deliro e questiono.
Não quero uma vida pequena, um amor pequeno, um alegria que caiba dentro da bolsa.
Eu quero mais que isso.
Quero o que não vejo.
Quero o que não entendo.
Quero muito e quero sem fim.
Não cresci pra viver mais ou menos, nasci com dois pares de asas, vou aonde eu me levar.
Por isso, não me venha com superfícies, nada raso me satisfaz.
Eu quero é o mergulho.
Entrar de roupa e tudo no infinito que é a vida.
E rezar – se ainda acreditar – pra sair ainda bem melhor do outro lado de lá.
(Fernanda Mello)

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Ouvir a Canção

Não que fosse impossível, mas como amar alguém que não ouve a mesma canção?

Como amar alguém que não decifra o que há na música, que não entende só a melodia, que não vê a poesia na letra e se emocina?

Como não perceber as possibilidades de um amor louco ou breve na canção que se descreve?

Como não precisar quando a voz vibra de saudade ou de dor?

Não se ama alguém que não ouve.

Não se planeja uma vida com alguém que não ouve a mesma canção, não se preocupa com a poesia, que não a entende, nem a sente, nem a perpetua.

Vida sem poesia, não sobra nada, nem amor para o próximo dia.

Não se ama alguém que não tenha um livro de Lya Luft, um cd do Chico ou de Maria Bethânia, um quadro na parede e um amor do passado.

Aliás, não se ama alguém sem passado, sem história, sem uma saudade de alguma coisa que até quando você olha nos seus olhos sente arder.

Quem tem saudade, tem alguma coisa boa que vem desde muito tempo.

Não se ama alguém pronto, alguém preparado, alguém seguro de tudo.

Só se ama alguém que ainda podemos ver crescer, crescer junto com o que também queremos ser.

Não se entrega um sonho nas mãos de alguém que não ouve a mesma canção, de alguém que não ocupa o teu pensamento todo, e não te retribui em dobro o gesto e o riso.

Não se ama alguém que não lê jornais, que não come besteiras, que duvida no toque do telefone.

Não se ama alguém que não conhece teu perfume, teu prato e teu lugar preferido.

Que não percebe que teu temperamento não é teu signo, que não acredita no que você daria a vida.

Não se ama alguém em quem não se confia de olhos fechados e de coração aberto.

Não se apaixone por alguém que não ouve a mesma canção, nem goste de matinês e cafeterias.

Não se ama alguém que não tenha plantas em casa, não use tapete na porta de entrada e não tenha talheres de inúmeras cores.

Não se ama alguém que derrete na chuva e se torra no sol.

Não se ama alguém que não viaja, que não planeja, que não tenha expectativas, nem que sejam mínimas e tolas.

Não se ama quem fala pouco, quem gesticula antes da palavra e que não cante junto com a música.

Não se ama quem nunca quebrou um copo, quem nunca esqueceu as chaves, quem está satisfeito com a cor da sala, quem não tem compromisso, quem perde a hora, quem joga extratos fora, quem se muda toda hora, que não tenha manias, que não acorde com o rosto amassado de manhã.

Desconfie se não te olhar nos olhos, se não te der segurança no dar das mãos, se mudar de assunto no domingo de manhã e principalmente, com toda certeza, desconfie, mude, termine se não ouvir a mesma canção.

(Cáh Morandi)

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Primeiro dia sem você – Tati Bernardi

                Acordo feliz, nada como acordar triste para não carregar a espera da decepção. Tomo um banho demorado escutando Cake no último volume. Claro que não é para te provocar, você não está lá para ouvir a banda que você tanto odeia apenas porque você tem ciúmes de tudo o que eu gosto, mas é para impor ao mundo que eu voltei, estou única e exclusiva novamente. Eu e o meu mundo. Eu e minha solidão sem preconceitos e sem lições de moral, minha melhor amiga, a solidão, nunca vai me achar estranha justamente porque é filha predileta da minha estranheza.

        Tomo café com ela que, assim como eu, não come muito. A solidão precisa manter a forma para me acompanhar eternamente, e eu preciso não vomitar pelo inchaço que ela me causa. Coloco uma roupa estranha, minha pulseira de dentes que você odeia, minha bota que não me deixa nada feminina e pinto os olhos, adoro não precisar parecer uma moça com dono.

                No carro escuto Nação Zumbi no último volume, você não conhece, nunca se interessou, como pode? Um movimento tão charmoso ou, no mínimo, uma música boa pra dançar. Lembro que você escuta o mesmo cd do Bob Marley há vinte anos e só troca quando algum amigo seu te dá alguma dica, as minhas dicas são sempre chatas, meu mundo te encheu, como você disse. Dou graças a Deus de estar tão bem acompanhada dentro do meu universo. Eu e Nação Zumbi, eu e Billie Hollyday, eu e Cake, eu e Frank Sinatra, eu e o silêncio do meu carro, sem ninguém pra me dizer que eu freio muito depois do que deveria.

                Se eu quiser, hoje, alugo um daqueles filmes europeus p&b e assisto embaixo da minha coberta com um pijama bem feio e meu cabelo em seu pior estado. Quem sabe eu não tiro umas melecas do nariz, beijo minha cachorra na boca e solto pum. Eu e meus filmes prediletos, eu e minha filha peluda, eu e as extensões do meu corpo. Faço aula de yoga ou musculação? Encontro o meu novo amigo interessante para um café ou bato papo com a minha nova amiga sobre essa nossa mania de não saber ser feliz, mas impor ao mundo o tempo todo a cartilha da felicidade?

                O mundo é enorme sem você, sem o seu amigo que solta fogos de artifício com o cofrinho aparecendo mas me acha uma babaca, sem o seu amigo que nunca nem olhou na minha cara direito mas bate em mulheres, e sem a sua amiga que cheira enquanto o pinto do marido não levanta e a bebê chora. O mundo é enorme sem toda a culpa que eu carrego por não ser a menininha leve e sem preconceitos que curte ver o desenho da Lua no mar e não se abala com tanto amor e nem com o medo e o cansaço que viver causa. Eu sei que sou pesada, triste, dramática, neurótica, louca, insatisfeita, mimada, carente. Mas você se esqueceu da minha maior qualidade: eu sou só.

                Eu era só aos cinco anos quando eu não entendia porra nenhuma do que estava acontecendo e corria para rezar no banho. A fumaça de cigarro tomando toda a casa enquanto meus pais decidiam absolutamente nada em longas discussões que sempre terminavam com a minha mãe jogada em algum canto tremendo e vomitando, e eu com a certeza de que ela morreria cedo. Hoje em dia ela sinaliza o tempo todo que pode morrer por falta de carinho, e eu não consigo dar a mínima. Eu era só quando descobri que não controlo a vida, primeiro a minha mãe namorando justo no horário do Corujão do sábado, o horário em que eu podia ficar acordada até mais tarde namorando ela num mundo escuro e longe de tudo, depois as uvas lavadas em vinagre me esperando para sempre e meu avô morto no quarto ao lado, as meninas da escola ganhando corpo e charme antes de mim, o meu jeito estranho de ter medo de perder o controle e de multidão. Eu era só pesando doze quilos a menos, quando o mundo inteiro queria que eu comesse pra não morrer, e eu querendo viver tanto que tinha medo de não conseguir, como tudo que sempre quero muito, e acabo fodendo logo pra não ter que viver com a ansiedade do desejo maior do que eu. Eu quase morri de tanto que queria viver. E eu tô quase acabando com o seu amor por mim, de tanto que eu quero que você me ame. Percebe? Louca. Louca e só, porque ninguém vai agüentar isso.

        Eu sempre estou só quando sou tomada por um susto longo e paralisador que dá vontade de me concentrar apenas em mim, e não ver nada e nem ninguém, por isso quis chorar só e escondida atrás da porta, como um rato que todo mundo tem nojo, que causa doenças, que tem um longo rabo deixando tudo entreaberto para trás, mas que no fundo só quer um pouco de queijo, como qualquer criança bonitinha. Carregar nossa alma, com tudo o que ela tem de bom, de mal e de incompreensível, é uma tarefa solitária.

                Eu sempre fui só querendo ter uma família grande, café da manhã, Natal, cachorro, e eu continuo só quando te vejo como minha família, mas você me deixa sozinha com duas ou três opções de suco para uma ou duas opções de pão. O mundo é cheio de opções sem você, mas todas elas me cheiram azedas e murchas demais. Eu continuo só quando quero escrever uma vida com você, mas você detesta meus caminhos anotados e minhas regras. E eu detesto seu sono e sua ausência. Eu detesto seu riso alto e forçado pisoteando o meu mundo de sombras, eu detesto você saindo pela porta e as paredes se fechando, se fechando, e eu sem poder berrar para, pelo amor de Deus, você me resgatar, e me colocar no colo, e me dizer que você me entende e sofre também.

                Eu sou só porque enquanto eu pensava tudo isso, você impunha aos quatro ventos, querendo parecer muito forte e macho para seu grupinho muito forte e macho, que você poderia simplesmente abaixar meu som ou mudar de canal, como um programa chato qualquer que passa na sua tv. Eu hoje fui ao banheiro duzentas vezes para ficar longe do meu celular e do meu e-mail, ficar longe de todas as possibilidades da sua existência. Me olhei no espelho bem profundamente para enxergar minhas raízes e ganhar força, chorei algumas vezes, fiquei sentada no chão do banheiro, para ver se meu corpo esquentava um pouco ou porque estava mesmo me sentindo um lixo. O ar-condicionado hoje está insuportável, mas eu não acho que mude alguma coisa desligá-lo.

                Estar sozinha não muda nada, conheço bem esse estado e, de verdade, sei lidar até melhor com ele. O que me entristece, é ter visto em você o fim de uma história contada sempre com a mesma intensidade individual. Eu tinha visto na sua solidão uma excelente amiga para a minha solidão. Achei que elas pudessem sofrer juntas, enquanto a gente se divertia.

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Walt Whitman

Um dia alguém me disse que existem dois tipos de pessoas no mundo:
1º – As pessoas que costumam fazer homenagem a outras.
2º – E as que são dignas e merecedoras de serem homenageadas.
Walt Whitman é uma daquelas pessoas que merece mais que uma homenagem.
Mais que muitas.
Mais que uma vida inteira de poesia.
Walt Whitman é mais que uma pessoa.
Mais que muitas.
Mais que uma vida inteira de poesia.
Aqui tentei fazer a minha parte.
A primeira parte de muitas.
A primeira parte de uma vida inteira de poesia.
Das Pessoas que Atingem Posições Elevadas
 
Das pessoas que atingem posições elevadas,
cerimónias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —
de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)
está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tacteando no escuro.
 
 (Walt Whitman, in “Leaves of Grass”.)

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“Apatia”

Será um fenômeno essa apatia entre as pessoas da minha idade e minha classe social?

Será o excesso de possibilidades que desnortea as pessoas?

Porque tudo no mundo equivalente torna-se igualmente desinteressante?

Eu percebo sentimento triste em muitas pessoas dessa “era”, meu inclusive.

Sonhamos em fazer um pouco de tudo na vida.

Porém, sem saber por onde começar — ou ter ânimo para começar –, às vezes optamos por continuar sonhando.

É pavorosa a ideia de escolher um caminho e gastar a carta da escolha.

Estamos parados na encruzilhada das possibilidades infinitas.

E somos ainda uma “juventude jovem”…

E com todas essas limitações, eu gostaria de buscar alguma concretude mágica que fosse além das palavras.

E isso, em todas as línguas com as quais me relaciono.

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“As coisas que a gente faz para se torturar”

 

 
 

Tem gente com vocação real para carrasco e que não sossega enquanto não sacrifica a si próprio

Adianta ficar batendo a cabeça na parede porque perdeu uma oportunidade rara de chamar uma garota para sair? Entendo, você não costuma encontrá-la, não sabe seu telefone, seu sobrenome, seu endereço, onde ela trabalha, teve a chance e deixou escapar, mas vai passar quantos meses se lamuriando como se ela fosse a última mulher do mundo?

E isso ainda é tortura leve. Tem gente com vocação real para carrasco e que não sossega enquanto não sacrifica a si próprio. Que gente? Todos nós.

Há os que têm certeza de que, se estão vivendo uma boa fase hoje, pagarão o preço amanhã, e imaginam direitinho como: sofrerão um acidente, perderão o emprego, serão traídos. Não é possível que esteja tudo bem, assim, no mole, de graça. Algo vai acontecer, é só colocar a imaginação pra funcionar.

Falei em traição? Bah! Um clássico. O relacionamento de vocês é mais firme que o caráter do Dunga, não há o menor indício de que possa entrar água, mas ainda assim você não resiste em se martirizar. Qualquer 10 minutos de atraso, qualquer ligação telefônica não atendida, qualquer desatenção vira indício de que algo está sendo escondido. E você não se aquieta enquanto não descobre o que não existe, enquanto o outro não confessa o crime que não cometeu.

Além disso, há uma doença secreta se desenvolvendo no seu estômago, no seu cérebro, na sua corrente sanguínea. Os exames não revelaram, os médicos não descobriram, os sintomas não apareceram, mas são favas contadas, você está condenado.

Pensamentos mórbidos com morte. Imaginar cenas de os filhos correndo risco, de o apartamento sendo invadido por marginais, de você morrendo sozinho sem ninguém descobrir seu corpo por dias: filmes de terror que não saem de cartaz na sua cabeça.

Relutamos em aceitar que, se a tragédia não bateu à nossa porta, não foi por engano, e sim por uma contingência da vida. Não bateu, passou reto, não voltará para cobrar a conta que não é devida.

Mas só um curso de imersão budista com o próprio Dalai Lama para fazer a gente abandonar os grilhões a que nos aprisionamos voluntariamente. Imagina se logo você será poupado. Quá! Você não é bobo, não quer ser pego de surpresa, então passa a vida se preparando psicologicamente para a dor, torturando a si mesmo para, quando chegar a hora, estar tão acostumado com o sofrimento que nem doerá tanto.

É a danada da culpa que não permite que sejamos felizes sem ter que pagar penitência por tamanho privilégio.

 (Por Martha Medeiros)

 

 

 

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– SOL –

Neste exato segundo em que o planeta terra passeia pelo sistema solar, há uma infinidade de vidas que se iniciam e outra infinidade que chegam ao fim.

É natural.

Talvez chegue um dia em que morrer será a exceção e o mundo atingirá sua lotação.

Para isso existe a ciência, a medicina: evitar que a vida chegue ao fim.

Viver alcança seu valor máximo.

Tanta gente aprendendo a sorrir com conquistas, mas a maioria ensaiando o futuro.

 Não é o que eu quero.

Quero mesmo é o presente.

Cansei de me preparar para um dia que pode não chegar.

Existe vida no agora?

Se houver, eu vou encontrar.

Eu tenho essa urgência de viver, essa pressa de qualquer coisa que ultrapasse a inércia.

É isso que me faz jogar dados ao acaso e me atirar de carros em movimento, é por isso que ando longe de viadutos.

Meu suicídio diário não é uma forma de morrer.

É uma tentativa desesperada de encontrar essa vida, testar minha capacidade de quase ir e voltar, descobrir se eu mereço estar aqui e se existe mesmo um deus.

Afinal, ele concorda ou não com a minha maneira de encarar as coisas?

Por que não me castiga por ser tão estupidamente desapegada?

É minha necessidade de viver que me mata.

Tenho a impressão de ter atingido o auge da minha maturidade, mas não tenho espaço físico ou moral pra existir nessa condição.

Estou pronta pra largar tudo pra trás todos os dias, mas algo finca meus pés no chão sem aviso prévio.

É preciso ser coerente pra ser aceito, mas como não me contradizer tentando achar um equilíbrio?

Como não ser um pouco louca nesse mundo tão absurdo?

Não adianta me oferecer o discurso de faculdade-emprego-família como verdade absoluta.

A gente não aprende a viver sentado numa carteira de colégio.

Não é a fórmula de Pitágoras ou a definição de pronome oblíquo que vai fazer com que eu seja mais ou menos inteligente.

Saber organizar informações burocráticas em série e ser programado roboticamente não faz de ninguém um ser humano repleto.

Isso tudo só rende uma possível colocação relevante numa prova de vestibular, um êxtase momentâneo.

A vida se aprende nas perdas.

É perdendo a liberdade que a gente descobre que não se encaixa, é perdendo alguém que a gente descobre que não vale a pena lutar por futilidades, é perdendo o apoio que a gente descobre que o resto do mundo não para só porque nosso mundo parou.

A gente vai aprendendo a viver assim, na marra, no grito, no sufoco, no impulso.

Eu quis mudar o mundo, quis ser brilhante, quis ser reconhecida.

Hoje eu quero bem pouco e prefiro me concentrar no agora do que planejar um futuro incerto.

Eu me libertei da culpa e dei de cara com algo novo: não me encaixo, e aceito.

Não é justo perder as asas no momento em que se descobre tê-las.

É preciso poder voar, é preciso ter uma visão estratégica das janelas.

Ver o sol e não poder tê-lo é absurdo.

Então eu deixo algumas coisas passarem incompletas porque tenho consciência de que certas palavras ainda não têm tradução.

Por mais que eu grite, vai ter quem não entenda, não aceite.

O que eu não aceito é ter nascido num mundo tão grande e conhecer só uma pequena parte.

Vou voar.

Quem conseguir compreender, que me acompanhe.

 

(Veronica H.)

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Os Cheiros – Por Danuza Leão

 

 
Existem cheiros inesquecíveis.
Cada pessoa tem seus prediletos. E basta uma mínima lembrança para que tudo volte: a temperatura do momento, a felicidade ou a tristeza que se sentia, as imagens de quem estava perto, tudo. Tudo.
Cheiros podem ser alegres ou tristes.
Era muito bom quando se entrava em casa depois do colégio, logo antes do almoço, e se sentia o cheiro do refogado – alho, cebola e tomate – para fazer o picadinho ou o bife de panela enrolado no bacon e preso por um palitinho. Quantos segundos você leva para atravessar o tempo e voltar aos seus 11 anos?

Lembra quando há muitos, muitos anos, você ia passar as férias na fazenda? Ah, uma fazenda tem aromas absolutamente inesquecíveis: o do capim, o da terra depois da chuva, o do estábulo onde se ia de manhã bem cedo tomar o leite tirado da vaca, ainda morno, numa canequinha de alumínio. E o cheiro da tangerina? Aliás, tangerina não, mexerica; aquela pobrinha, modesta, de casca fina, que deixava a mão cheirando durante três dias. Esse é um cheiro muito alegre. O cheiro do bolo saindo do forno é para sempre – bolo de tabuleiro, cortado em losangos, com cobertura de açúcar com limão, e um detalhe precioso: naquele tempo, por mais que se comesse não se engordava, e em cima da mesa havia sempre um vidro de fortificante para abrir o apetite. Que felicidade ter tido uma infância no interior! Mas existem outros aromas não ligados ao paladar e também inesquecíveis. O cheiro do mar quando se chega em Salvador – uma licença poética, com licença. E você já teve uma tia-avó que morava numa casa bem arrumada, cujo assoalho era encerado toda semana? O brilho era dado a mão, com uma escova de cabo alto como uma vassoura, e era chegar e ouvir: “Cuidado para não escorregar”. Que cheiro limpo, honesto, que cheiro de gente direita. Será que isso ainda existe?

Mas há também os cheiros angustiantes: os de hospital, de sala de cirurgia. Muito cheiro de flor você sabe o que lembra – melhor não falar disso. E existem os perfumes ricos: de carro novo, de um bom fumo de cachimbo. E vamos combinar: cheiro de alho é bom na cozinha, de sexo no quarto, e é proibido misturar. Por falar nisso, o cheiro do homem que se ama, depois do amor, é melhor nem lembrar para não desmaiar de saudade.

As cidades também têm seu cheiro, cada uma muito particular: se você for levada, de olhos vendados, para o Bloomingdale’s, sabe na hora que está em Nova York. E se respirar um aroma de cominho misturado a curry e a canela vai saber que está no souk de Marrakesh.

Mas existe um cheiro que só as mulheres conhecem. É o que elas sentem quando estão enxugando seus bebês depois do banho. É preciso que não haja uma só pessoa por perto num raio de 200 metros para não haver interferência de qualquer ordem. Sem nenhuma presença estranha – nem mesmo a do pai –, mãe e filho poderão dizer bobagens e rir de coisas que só eles vão entender. Depois do talco, a mãe vai botar o nariz no pescoço de sua cria e cheirar com todos os seus cinco sentidos. No princípio timidamente, mas cada vez mais forte, até quase arrebentar os pulmões de tanto amor. Na hora a gente não sabe, mas um dia vai saber: não existe nada igual a esse cheiro nem a esse momento, e nunca vai haver um melhor.

Porque esse é o cheiro da vida.

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